ANA AMÉLIA GENIOLI | DES.NORTE

 

mare nostrum ana roman

O domínio dos mares e oceanos é uma questão central há muitos séculos. A navegação trouxe a possibilidade de troca e comunicação entre vizinhos distantes. Em muitos casos, a aventura da navegação veio acompanhada pelo processo de dominação e pela exploração de populações inteiras. Constituem-se territórios extra mares, parcelas do espaço que são submetidas a uma ordem externa e ao poder emanado pelo agente estrangeiro, que se territorializa nessas áreas. Tais processos de colonialismo e imperialismo ocorrem no espaço continental e insular: dividem-se parcelas do espaço e criam-se novas fronteiras para que o poder seja exercido. O mapa aparece, nesse contexto, como um instrumento para facilitar as rotas entre mares e oceanos, representar as novas conquistas e identificar – ou até imaginar - tudo aquilo era território ou ainda terreno desconhecido.

A superfície dos mares e oceanos não escapa às disputas territoriais. Em 1609, produziu- se o primeiro documento sobre sua jurisdição. O holandês Hugo Grócio, contratado pela direção da Companhia Holandesa das Índias Orientais, escreve anonimamente o tratado Mare Liberumn ('Mar livre' ou, 'Liberdade dos Mares'), em defesa da livre navegação nos mares. Segundo o autor, os mares seriam livres por seu caráter primordial de comunicação entre os povos, tal que sua liberdade deveria ser garantida. Em 1635, essa tese foi contestada pelo inglês John Selden, que modificou o conceito para “Mare Clausum". Para Selden, o mar seria, na prática, tão passível de ser apropriado quanto o território terrestre e, portanto, conquistado.

Essa história de longa duração contada nos parágrafos anteriores atravessa os trabalhos de Ana Amelia Genioli. Nessa nova série, há uma espécie de impulso pelo mapa. Presente em outros trabalhos da artista, a representação cartográfica é ponto de partida e chegada para uma nova imaginação e representação cosmológica. Não há, nas cartas e portulanos criados pela artista, meridianos e paralelos, uma escala única e, nem mesmo, uma legenda explícita ao espectador. Os elementos que compõem o cartográfico misturam-se. Os mapas da artista passam a representar lugares que só existem como imagem e imaginário. Ela deixa, porém, os títulos das obras como pistas para leitura.

Na nova série de monotipias de Genioli, o impulso pelo mapa é marcado pela presença de uma rosa dos ventos, que é desconstruída e se expande por toda a dimensão do papel, aparecendo novamente em fragmentos. Tal elemento cartográfico se desfaz e se esvai diante da mancha de cor que parece formar, diante dos nossos olhos, uma superfície aquosa. Mare Clausum e Mare Liberumn misturam-se: as formas

consenso sobre o assunto e, atualmente, há uma faixa de litorânea com quilometragem determinada sob controle dos diversos países. Há, porém, grandes parcelas do oceano identificadas como águas internacionais: elas são ambientes com pouca - ou quase

Ao longo dos anos, chegou-se a um

nenhuma - regulamentação.

geométricas vindas do esfacelamento da rosa dos ventos tentam conter o movimento da água, mas ela escapa. O mar afirma sua liberdade – espraiando-se pelo papel em um gesto de impossível contenção.

A água sempre escapa. Ela muda de forma, evapora entre pequenos poros invisíveis aos nossos olhos, ela escorre dentre os nossos dedos quando tentamos pegá-la com as mãos. Os procedimentos repetidos nas monotipias da série assemelham-se a exercícios de tentativa de contenção da água que escorre em todas as direções. Ao contrário da rosa dos ventos tradicionais, que aponta para o norte geográfico do planeta formado por seu campo magnético, a rosa dos ventos esfacelada não aponta para lugar nenhum. Ela aponta para todos os lugares, e segue – ou contraria – o movimento da água. Não há mais norte para onde ir. Há apenas o movimento fluido que a impulsiona e que vem de múltiplas direções.

Os elementos geométricos, quando combinados com a circulação da água por toda a superfície do papel, produzem a imagem de uma harmonia musical. Há um ruído: um som que vem do fluxo de água e de seu encontro com a superfície. Presentifica-se diante do espectador uma dança das águas, a qual somos, por nossa escala humana, incapazes de apreender mesmo com nossos preciosos - e científicos - instrumentos para apreensão da natureza. Nos colocamos apenas como observadores desse fenômeno natural.

Apesar da precisão de traço e forma, as monotipias de grande escala parecem nos engolir quando instaladas lado a lado. Elas o tempo inteiro nos lembram da nossa desorientação diante do mundo, e das falhas tentativas de mapear com precisão absoluta o nosso entorno. Não há apenas um norte e, apesar das tentativas de contenção, o mar não pertence a ninguém. A mancha de cor que escapa a forma geométrica nada mais é do que uma metáfora do metáfora do movimento, presente em tudo que está no mundo. O exercício de Ana Amélia é o exercício de tornar visível a tarefa inexequível de conter a natureza.

Cartografias para Existir

Um mapa nunca é exatamente o local que está sendo mapeado. É sempre uma representação e implica necessariamente em um deslocamento.

O mapa também não pode ser concebido apenas como uma representação da fisicalidade de um espaço. Ele é sempre sígnico. Isto significa que aquilo que está sendo mapeado é um fragmento de um local determinado, mas abriga também fluxos e toda descontinuidade, incerteza e instabilidade dos sentimentos, das indagações, das narrativas e outras tantas caoticidades sígnicas que o compõem.

É disso que se trata a obra de Ana Amelia Genioli.
Em todos esses anos que a acompanho – mais de uma década – aprendi que nunca se trata apenas daquilo que aparentemente lá está, e sim, da possibilidade de explicitar as tessituras invisíveis.

O des.norte, como diz a própria artista, é uma vontade de resistir. Não é uma obra apaziguada, desgarrada da política. A sua ação mais engajada talvez seja a de conectar olho, tato e movimento de modo a despertar o corpo de quem está diante das imagens.

Tecnicamente, poderíamos dizer que são rosas dos ventos sobre monotipias. Mas não são. O que salta aos olhos é o movimento que extrapola as setas e gráficos que lá estão.

E que movimento é este que perfura as espacialidades?

As manchas com pigmentos lembram os fluídos do corpo.
Não é por acaso.
É o corpo que intensifica os processos gerando modos de agir e conhecer.

O que me parece importante nesta experiência, é que nada está isolado.
Não é apenas um local, mas o atravessamento de espacialidades.
Não é um sentimento próprio, mas um fluxo.
Nunca é só imagem. As materialidades com as quais Ana Amélia lida o tempo todo são imagens-estados-movimentos ou imagens-sentimentos-pensamentos.

Neste sentido, a representação cartográfica, nunca se restringe ao que supostamente está sendo mapeado.
Não é uma coisa mapeada, mas um fluxo de experiência.
Lugar não é apenas lugar.

Corpo não é só (um) corpo.

Isto me leva a pensar que pigmentos, gráficos e setas de certa forma são inoperantes na obra de Ana Amélia.
Eles partem de suas funções habituais, mas no processo se complexificam transformando-se em operadores de espacialidades cujas funções não estabelecem o cumprimento de tarefas dadas a priori, mas abrem novas trilhas.

É importante notar que há também muitas cidades nessas cartografias propostas por Ana Amélia.

São cidades visíveis na imaginação, uma vez que conectam a vivência de ter estado lá com emissões de possibilidades que se derramam também em nós.

Afinal, é provável que esta cartografia que emerge do projeto des.norte sirva para que a gente não se acostume.
Para que continue sendo possível perceber a potência da mudança.
Para que ainda faça sentido acreditar na força de um espaço de ressonância que dê passagem a outros acontecimentos.

Resistir, neste contexto, deixa de ser apenas uma esperança longínqua.
É um levante poético que cartografa campos de ação e dá sentidos à vida.

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